O (En)Cena conversou com Domiciano Siqueira sobre a questão do
enfrentamento do uso de drogas no Brasil e das Políticas de Redução de Danos.
Domiciano é consultor na área dos direitos humanos ligados aos processos de
exclusão social, com ênfase na questão do uso de drogas, trabalhando com grupos
de alta vulnerabilidade como; prisioneiros, prostitutas, homossexuais, negros,
índios etc.
(En)Cena: Olá Domiciano, conte um pouco para nos como se deu o seu
envolvimento com a política de redução de danos?
Domiciano: A minha trajetória nessa área começou por volta de 1990, eu era
sócio de uma agência de propaganda no interior de São Paulo, e foi uma época
que as empresas começaram a procuras as agências de propaganda para se
associarem e participar de campanhas contra a AIDS que estavam surgindo com
muita efervescência. O meu trabalho nessa agência era no setor de criação e
produção de textos, então eu era aquele cara que estudava o assunto e fornecia
dados para o restante do pessoal da criação poder formar a campanha. Então
comecei a pesquisar essa relação da AIDS com as drogas, principalmente drogas
injetáveis. Até então, no Brasil, não se falava de uso de drogas injetáveis,
era coisa da Europa e Estados Unidos. Então começaram a aparecer nos boletins
epidemiológicos do Ministério da Saúde as primeiras informações desse grupo,
que relatava ter adquirido o HIV em consequência do uso injetável de drogas.
(En)Cena: O que te chamou a atenção?
Domiciano: Eu comecei a ver que essa ligação era muito
próxima. Os dados confirmam que, cerca de 46% dos casos de AIDS, eram de
pessoas que tinha relatado ter compartilhado seringa e consumido drogas de
forma injetável. Então eu vi que a questão das drogas era mais problemática do
que a própria questão o HIV, mas que muitas empresas não queriam vincular sua
marca à questão das drogas, então eu fui procurar o Ministério da Saúde. Eles
já sabiam como reagir diante da transmissão pelas relações sexuais, mas tinham
dificuldades para trabalhar com os grupos de risco.
(En)Cena: Como surgiu a Política de Redução?
Domiciano: Resumidamente, as melhores técnicas/estratégias de
enfrentamento dessas situações de drogas e do vírus HIV foram chamadas:
Programa de Redução de Danos, e já existiam na Europa. Sabia-se que haviam
nascido na Holanda na década de 1970, mas que tinha um histórico bem mais
anterior, por volta de 1920, 1930 em Rolleston. Rolleston é um condado no
interior da Inglaterra que tinha uma espécie de um centro de saúde. Os
profissionais médicos e enfermeiros ao ir para o trabalho nesse centro de saúde
tinha que obrigatoriamente passar por um grupo de moradores de rua, usuários de
heroína injetável e de álcool. E aquilo começou a intriga-los, pois não tinham
como ajuda-los. Então esses técnicos resolveram distribuir heroína e álcool no
centro de saúde, assim os usuários iriam ao posto para poder pegar a droga,
chegando ao posto de saúde eles ganhavam, além da porção, o direito de poder
tomar um banho, lavar suas roupas e, se quisessem, podiam conversar com esses
médicos, com esses enfermeiros, psicólogos, enfim eles passaram a usar essa
possibilidade para atrair esse grupo. Os resultados foram tão bons que o
Condado de Rolleston tornou sendo o berço da redução de danos no mundo, isso em
1930, 1940.
(En)Cena: É a partir daí ganhou o mundo?
Domiciano: Em 1970, na Holanda, usuários de drogas injetáveis
começam a se organizar politicamente porque muitos usuários de droga começaram
a morrer pelo vírus HIV. Os companheiros e os familiares começaram a acionar a
justiça e o Estado, alegando que os usuários morriam porque não tinham acesso a
nenhum tipo de tratamento. O estado respondeu o que o Brasil responde até hoje:
“Não, tem tratamento sim, se ele quiser parar nós temos para onde
mandar”. Mas como nem todos queriam parar de usar drogas, um tratamento
baseado na abstinência não era suficiente e, como aumentaram as cobranças da
população, o estado teve que encontrar um meio de se ajustar a real necessidade
do povo.
(En)cena: Qual a solução encontrada pelo governo holandês?
Domiciano: Dando a eles a seringas novas (pois as pessoas compartilham
seringa porque não tem dinheiro para comprar uma nova, a prioridade para um
dependente de drogas é comprar drogas) foi assim que o estado fortaleceu as
ideias de redução de danos. Começaram então, na década de 1970, as famosas
trocas de seringas.
(En)Cena: No Brasil a Política de Redução foi bem acolhida, ou enfrentou
alguma barreira para ser instalada?
Domiciano: No Brasil os primeiros casos conhecidos de HIV
datam da década de 1980, e então se descobre essa ligação da doença com o uso
de drogas injetáveis. Mais tarde descobriu-se que as hepatites também podiam
ser transmitidas das mesmas formas, e que também precisavam de uma intervenção.
O Ministério da Saúde em 1990 assumiu o compromisso de intervir nessa situação,
a primeira intervenção aconteceu na cidade de Santos, em 1989, eles implantaram
um programa de troca de seringas para combater a transmissão do vírus HIV.
Houve um confronto do Ministério Público, da Justiça e da Opinião Pública,
contra esse tipo de intervenção, alegando que essa medida estimularia o consumo
de drogas. Entre 1989 e 1992, houveram varias discussões no Brasil sobre o
tema, essas discussões substituíram, por um bom tempo, a Intervenção. E foi
proibido fazer trocas de seringas enquanto não se resolvia. Em 1990 o centro de
referência e tratamento de AIDS em São Paulo também foi proibido de fazer a
troca. Os jornais publicaram que o Ministério Público avisou que prenderia
qualquer médico que insistisse em distribuir seringas, já em 1992 o Ministério
da Saúde assumiu esse compromisso e financiou cerca de 10 programas de troca de
seringas no país.
(En)Cena: E como foi para você lidar diretamente com esse movimento,
participar da instalação dessa politica nos país?
Domiciano: Em 1993 eu cheguei a Porto Alegre para trabalhar na
Cruz vermelha brasileira, que tinha um projeto na tentativa de fazer frente ao
vírus HIV pelo uso de drogas. A Cruz vermelha teve um projeto financiado pelo
Ministério da Saúde cujo objetivo era uma companha publicitária visando à
transmissão do vírus HIV. Para mim foi um prato cheio, pois eu era do assunto,
estudava essa área, então trabalhamos um ano e criamos uma campanha
publicitária que foi um sucesso, foi um show, cujo slogan foi “A SERINGA PASSA,
A AIDS FICA” não havia nenhum julgamento moral, não estava dizendo “pare de
usar drogas que o HIV vai te pegar”, “você vai morrer disso”, não, simplesmente
respeitando o consumo mas dando uma informação importante “a seringa passa, a
AIDS fica” acorde!
(En)Cena: Como era o seu trabalho?
Domiciano: Eu fui uma das pessoas encarregadas de divulgar a
campanha nas rádios, emissoras de televisão, jornais, enfim, fazer a
distribuição da campanha nas ruas. Em 1994 a prefeitura de Porto Alegre, por
meio da Secretaria de Saúde obteve financiamento para a implantação de um
programa de trocas de seringas. Foi aí que eu fui chamado pela Cruz Vermelha
para trabalhar junto à Secretaria de Saúde e coordenar a implantação desse
programa. A novidade que Porto Alegre adicionou ao implementar o programa foi
que, se o usuário de drogas está diretamente ligado com o problema, ele tem que
se responsabilizar. Então o que a prefeitura de Porto Alegre fez naquele
momento foi assumir que as pessoas usam droga mesmo, mas o fato de usarem não
tiraria delas nem o direito e nem os deveres como cidadãos. Colocar essas
pessoas nas equipes de redutores de danos, que são as pessoas que fazem esse
trabalho nas ruas, criou um diferencial, e foi o fez que o programa avançasse
tão rápido.
(En)Cena: Os resultados em Porto Alegre surpreenderam?
Domiciano: Porto Alegre, entre 1995 e 1996, trocava cerca de 10 mil seringas
por mês. Por meio de trabalho de vinte pessoas que visitavam semanalmente
vários pontos da cidade, montaram uma rede de usuários de drogas enorme. Porto
Alegre recebeu visitas do mundo todo, do país todo, as pessoas queriam ver como
é que funcionava aquilo? As notícias eram tantas sobre o sucesso do programa
que foi se desfazendo aquela ideia errada que distribuir seringas podia
estimular o consumo, era o contrário disso, a gente começou a perceber, que os
usuários de drogas que se vinculavam ao programa, e passavam a trocar
regularmente a seringa ou na rua com os nossos redutores, ou nas unidades de
postos de saúde ligadas ao programa, e eles começavam a conversar com os
redutores, e começavam a procurar o programa querendo falar com os
profissionais de saúde, querendo deixar as drogas. E começamos a escrever, a
fazer capítulos de livros, publicar, o que tornou científica mesmo o nosso
trabalho.
(En)Cena: Como nasceu a Associação Brasileira de Redução de Danos
(ABORDA)?
Domiciano: Em 1997 a gente se deparou com um problema, o
estado não podia contratar usuários de drogas para trabalhar no serviço público
por conta da lei do concurso publico. Foi aí que eu percebi que só o estado não
poderia ser responsabilizado pelo problema, a sociedade civil também deveria
fazer seu papel. Em 1997 fundamos então em São Paulo a Associação Brasileira de
Redução de Danos (ABORDA). Essa organização não governamental teria a
responsabilidade de formar a rede nacional de usuários de drogas, além de
fomentar a implantação de redução de danos, exigir mais do financiamento,
enfim, organizar essa rede.
(En)Cena: Você fundou a associação?
Domiciano: Eu fui um dos fundadores da ABORDA e fui também o
primeiro presidente indicado para dirigir e essa ONG até oficializarem a
fundação. Fiquei na função como presidente por dois mandatos (quatro anos), até
outro presidente ser eleito. Atualmente sou presidente outra vez, até o
ano que vem, onde teremos mais um encontro nacional e novas eleições.
(En)Cena: Hoje vemos duas vertentes simultâneas e que vão em sentido
contrário à Política de Redução de Danos, a Internação Compulsória e as
Comunidades Terapêuticas. Sabemos que muitas dessas Comunidades trabalham
apenas duas dimensões do homem: o trabalho e a religiosidade, e negligenciam
que outros aspectos como: a dimensão afetiva, a dimensão orgânica e a
implicação política desses sujeitos. Como você enxerga isso?
Domiciano: Historicamente no Brasil só existem três olhares sobre as drogas.
O primeiro é o olhar da saúde, que vê no uso de drogas uma doença chamada
dependência química e propõe como tratamento a clínica psiquiátrica, felizmente
a gente vem descobrindo que hospital psiquiátrico não serve para nada, não
serve nem para louco. Há uma tendência em transformar o usuário de drogas no
novo louco. Como vivemos em uma sociedade capitalista, esse conceito da saúde
que vê no uso de drogas uma doença chamada dependência química e que propõe a
clínica psiquiátrica como forma de atenção, divide a sociedade em dois grupos:
quem tem dinheiro e vai ter acesso às clínicas particulares, e quem não tem
dinheiro e depende de serviços como o Centro de Atenção Psicossocial em Álcool
e outras Drogas (CAPS AD). Com o fechamento dos hospitais psiquiátricos os CAPS
AD passam a fazer o trabalho com os usuários de drogas, desinternando,
atendendo essas pessoas de uma nova maneira, baseada no conceito de redução de
danos. O segundo olhar sobre as drogas é o da justiça, que não a vê como
doença, mas sim como um delito. O tratamento, portanto, não é a clínica
psiquiátrica, é a punição. Essa visão também divide a sociedade em dois grupos:
quem tem dinheiro para contratar um advogado, e quem não tem e vai preso. O
terceiro e último olhar, é o mais antigo, o das religiões. Ela não vê nem como
doença, nem como um delito, ela vê como um pecado, portanto, o tratamento não é
nem a clínica psiquiátrica nem a punição, é a conversão. A religião é, por sua
vez, a única que não divide, não separa ricos e pobres. Se você está convertido
estará curado e o problema está resolvido. Quem usa drogas ou é doente, ou é
delinquente ou é pecador, então ele raciocina e reage de acordo com aquilo. O
olhar que a redução de danos nos propõe é que o uso de drogas não é só uma
doença, não é só um delito, não é só um pecado, existe um quarto olhar, é o
olhar baseado no nosso conceito de cidadania. A cidadania vê como um direito.
(En)Cena: Você entende a dependência química como doença?
Domiciano: A redução de danos questiona as duas palavras chaves que organizam
o nosso pensamento em relação às drogas que são; prevenção e tratamento. Vamos
falar de álcool, por exemplo, os adolescentes olham para os adultos que bebem
numa boa e veem que a prevenção não foi cumprida, pois a prevenção diz para não
usar nunca, é por isso que a prevenção que as pessoas tanto gostam é uma
ilusão. É necessário que tanto estado quanto sociedade civil se organize para
permitir esse grupo intermediário, onde está a maioria das pessoas. É possível
usar drogas e cumprir com as suas responsabilidades, quem duvidar disso que eu
estou falando, dá um passeio pela cidade e você verá quanta gente bonita,
quanta gente rica, quanta gente boa, quanta gente que estuda e trabalha e vai
beber, e depois volta para casa numa boa, não perde trabalho nem família, muito
menos não rouba ninguém... Nós temos que parar com essa ideia ilusória de achar
que o mundo é o mundo que a gente imagina. O mundo é diverso, a ausência do
exercício da democracia, tão importante para nós, é que precisa ser restaurada
para que a gente comece a lidar melhor com esses, assim chamados, grupos de
alta vulnerabilidade.
(En)Cena: A droga sempre existiu e sempre vai existir, as pessoas usam
drogas. O problema não é a droga em si, mas é a relação que a gente estabelece
com ela, como você vê essa a relação que essa sociedade estabelece com as
drogas em geral?
Domiciano: Tem uma frase histórica, do psiquiatra e professor na UNIFESP, Dr.
Dartiu Xavier da Silveira “o contrário de dependência não é abstinência, o
contrário de dependência é liberdade”. Isso explica porque somos
contrários à internação compulsória... A internação trata de uma doença da
liberdade. Nós, principalmente brasileiros, temos um histórico de convivência
com a democracia, consequentemente a gente não sabe viver com liberdade, daí a
influência tão forte e muitas vezes negativa da ideia das religiões. Eu defendo
a espiritualidade, é bom dizer isso, como defensor dos direitos fundamentais,
eu defendo qualquer crença, mas agora estamos falando de políticas públicas e
quando estamos falando de políticas públicas, a gente não pode pegar a fé
individual e transforma-la numa política que vai atender pessoas que não tem
religião. Eu acho que a redução de danos é muito polêmica, pois ela não traz só
prevenção de doenças, ela traz toda a liberdade à tona e mostra
escancaradamente que as pessoas que não tem direito sobre seus próprios corpos,
não terão os seus deveres acionados, trabalhados e mobilizados em prol da
maioria. Para encerrar essa parte, você vê que no Brasil uma das penas
alternativas – e eu sou favorável às penas alternativas – oferecidas é
prestação de serviço à comunidade. Prestar serviço à comunidade tinha que ser
um prazer a todo mundo, mas no Brasil isso é castigo.
(En)Cena: Como a redução de danos no Brasil lida com os três olhares sobre o usuário de drogas (Doença, Delito, Pecado)?
Domiciano: Então nós temos para o quarto olhar, que é o da
cidadania e que vê o uso de drogas como um direito, como senso de
solidariedade. E ele não é somente religioso, ele não é somente partidário, o
senso de solidariedade é fruto do que nós chamamos de Transformação
Paradigmática - e que não sou eu que estou defendendo - existem muitos nomes,
muitos grandes nomes que vêm a bastante tempo defendendo que o mundo pode ser
restaurado a partir de uma ação individual gerida pela vivência em grupo, pelo
cuidado que cada um deve ter com o próximo.
(En)Cena: Não há como enfrentar essa questão sem questionar alguns
valores da sociedade, concorda?
Domiciano: Exatamente... Ninguém quer ter preconceito.
Qualquer um que você saia na rua perguntando vai negar ter preconceito. Mas como
se que acaba com o preconceito? É reconhecendo o conceito que organiza o
preconceito. Ninguém quer mexer no conceito de saúde, de religião, conceito de
justiça. Tem-se a sensação de que vai bagunçar se a gente mexer... Acho que
conseguir mexer nesses conceitos é o grande problema.
(En)Cena: Domiciano, para encerrar, gostaria que você falasse um pouco
sobre suas perspectivas dos serviços de saúde e da relação, se é que existe, a
relação da Redução de Danos com a clínica de rua?
Domiciano: Em minha opinião - e a minha opinião é fruto da minha observação,
dos livros que eu leio, dos filmes que eu assisto, das músicas que eu escuto,
do trabalho de campo, da rua - eu sou da rua. O que eu vejo, é que deveria
haver cada vez menos policiais, e cada vez mais cidadãos estimulados a assumir
a sua própria história. Estamos vivendo um momento ruim no Brasil, e em parte
eu acho que isso é fruto do desenvolvimento capitalista. Estamos com muita
dificuldade de perceber que não basta termos dinheiro - não vamos fazer aqui
uma discursão filosófica se dinheiro traz ou não felicidade - acho que dinheiro
traz felicidade quando ele vai do rico ao pobre, quando vai do pobre para o
rico ele traz desespero. Não é dinheiro que está faltando, falta uma definição
política. Todo serviço público que você vai hoje em dia tem um guarda municipal
armado na porta, e aquela plaquinha: “maltratar funcionário público é crime de
1 a 3 anos de prisão”... Eu vi um cara falando assim: “Tira essa roupa sua de
funcionário público, que eu quero acertar é a cara do homem que veste esse
uniforme”, acho que essa desconstrução tem que ser acelerada. Precisa haver
mais investimento nisso, acho que a gente tenta. Temos muitas angústias... Eu
acho que o Brasil, como eu disse, o Brasil está vivendo um momento muito chato,
mas também reconheço que essa chatice é fruto do meu jeito angustiado de ver o
que está acontecendo, e eu confesso que tenho pressa, porque eu quero ter a
chance de ver um mundo um pouquinho melhor.
Por Jonatha Rospide Nunes
Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal Fluminense, Professor do CEULP e Colaborador do CRP/09 .
Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal Fluminense, Professor do CEULP e Colaborador do CRP/09 .
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